Brasil enfrenta a pior escassez de chuvas para a geração de energia em 91 anos; se situação continuar e população não economizar, ‘podemos ter problemas no próximo ano’, diz especialista.
Ruas parcialmente iluminadas. Prédios públicos na escuridão. Dentro das casas, o corte no consumo da eletricidade, a troca de lâmpadas incandescentes por lâmpadas fluorescentes e o desligamento compulsório de eletrodomésticos como geladeiras, freezers e televisão. Estas são algumas lembranças que constituem a memória dos brasileiros que vivenciaram a “crise do apagão” em 2001. Após 20 anos, as lembranças voltam à tona com a atual escassez de chuvas e o esvaziamento dos reservatórios das hidrelétricas e levantam a questão: o país pode enfrentar uma nova crise no fornecimento e distribuição de energia elétrica?
O que foi a “crise do apagão” em 2001?
Devido ao potencial hidráulico do Brasil, a maior parte da energia elétrica que abastece o país é gerada em usinas hidrelétricas. Instaladas em rios, as hidrelétricas usam a força da água para transformar energia mecânica em energia elétrica. No ano de 2001, estas usinas eram responsáveis por gerar cerca de 90% da energia que chegava aos lares e comércios dos brasileiros. Na época, a população e a indústria cresciam, demandando um consumo maior de energia a cada dia. No entanto, a escassez de chuvas, falta de planejamento público e ausência de investimentos em geração e distribuição de energia colaboraram com o esvaziamento dos reservatórios das hidrelétricas. Estes impasses somados à grande demanda colocaram o sistema elétrico brasileiro à beira do colapso.
“Lembro perfeitamente do uso excessivo dos reservatórios a cada ano que passava. Em 1998, 1999 e 2000 a água diminuía e atingia níveis menores. Com a água quase no fim, chegamos a 2001 e enfrentamos uma crise hídrica, que nos forçou a racionar a energia”, recorda Raimundo de Paula Batista, sócio-diretor da Enecel Energia. Diante do cenário caótico, no último ano de mandato, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) precisou instituir uma série de medidas, como blecautes programados, para evitar o colapso do sistema. Apesar do período ficar conhecido como “crise do apagão”, na prática, não houve nenhum apagão. Isso porque, apagão caracteriza falhas no sistema elétrico que causam, acidentalmente, blecautes. No período, todos os blecautes ocorridos foram planejados pelo governo federal como forma de economizar energia.
Com a meta de reduzir em 20% o consumo energético do país, a gestão de FHC instituiu o racionamento obrigatório por parte de famílias e empresas no Distrito Federal e outros 16 Estados das regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste. Iniciada em 1º de julho de 2001, a “crise do apagão” se arrastou até fevereiro de 2002, gerando um prejuízo de R$ 54,2 bilhões aos cofres públicos brasileiros — como estima o cálculo do Tribunal de Contas da União (TCU). “O racionamento acabou trazendo alguns ensinamentos importantes para a população brasileira. Diante do cenário, de certa forma, todos os brasileiros aprenderam a economizar a energia. Por exemplo, aprendemos ali a desligar as luzes ao deixar um ambiente, a tirar as tomadas da energia quando não estão sendo usadas, a reduzir o tempo de consumo do chuveiro elétrico e outras ações”, explica Batista.
É possível comparar a atual crise hídrica ao cenário de 2001?
De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o Brasil está enfrentando a pior escassez de chuvas para a geração de energia em 91 anos. A seca atinge sobretudo os reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste, responsáveis pela geração de 70% da energia proveniente de hidrelétricas em todo o país. Apesar disso, nos últimos anos, o governo multiplicou a capacidade de gerar energia por meio de outras fontes, diminuindo assim a dependência de hidrelétricas. Segundo o Ministério de Minas e Energia, em 20 anos, a alta do uso de fontes limpas e renováveis, assim como o aumento da produção energética em usinas termelétricas, reduziu a dependência de hidrelétricas de 85% para 61%. Diante dos números, o sócio-diretor da Enecel Energia afirma que é possível traçar comparações entre as crises de 2001 e 2021. “No passado, vivenciamos a mesma questão da estiagem prolongada, ou seja, do longo período de falta de chuvas. Além disso, também estamos consumindo cada vez mais energia, enquanto o nível dos reservatórios está muito baixo. Tudo isso nos faz acender alerta total”, diz.
Há a possibilidade do Brasil enfrentar outros apagões?
Para esclarecer a questão, o especialista Raimundo Batista retoma os significados de “apagão” e “racionamento”, reforçando as diferenças práticas entre os termos. Enquanto “apagão” remonta aos blecautes acidentais que ocorrem quando há falhas no sistema elétrico, o termo “racionamento” se refere às medidas instituidas pelo governo visando a economia de energia. “Quando falamos em racionamento energético, abordamos decretos ou medidas provisórias (MP) que determinam o corte ou a redução obrigatória do consumo de energia elétrica no país. Caso o presidente Jair Bolsonaro opte pelo racionamento, deve adotar uma postura semelhante ao do governo FHC em 2001, que impôs uma série de medidas para evitar o colapso do sistema”, explica. Caso as medidas de racionamento sejam implementadas, Batista garante que o país “possui as condições perfeitas de atender energeticamente o mercado nacional até novembro deste ano”. No entanto, se os brasileiros não economizarem energia e a escassez de chuvas permanecer, “podemos enfrentar problemas no próximo ano”, como os apagões (ou falhas acidentais no sistema elétrico).
O que o atual governo está fazendo para evitar o colapso no sistema de energia?
Atualmente, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), instalado no Ministério de Minas e Energia (MME), atualiza constantemente o governo federal sobre a crise, indicando ações que devem ser adotadas para evitar que a situação se complique. O titular do MME, Bento Albuquerque, negou que o país implemente medidas extremas de racionamento energético — como os blecautes programados, mas admitiu que estão trabalhando com ações amenas para evitar o colapso do sistema. Entre as soluções estudadas estão acionar termelétricas e solicitar às empresas que alternem o turno de seus funcionários, diminuindo a sobrecarga do consumo de energia em chuveiros elétricos, eletrodomésticos e eletroeletrônicos no fim da tarde.
Além disso, diante das previsões negativas, no dia 28 de junho, o governo federal publicou a Medida Provisória (MP) 1055, que determina a criação da Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), um comitê interministerial com poderes plenos para estabelecer as diretrizes obrigatórias de gerenciamento da crise. A gestão também planeja publicar uma MP que cria a Câmara de Regras Operacionais Excepcionais para Usinas Hidrelétricas (Care), que poderá alterar e definir a vazão dos rios e reservatórios de usinas hidrelétricas sem depender do aval de especialistas, Estados, municípios ou órgãos. “A ideia básica da MP é autorizar que o comitê possa homologar todas as decisões técnicas de monitoramento do setor elétrico. Em outras palavras, a MP terá poder sobre todas agências reguladoras, como a Ana, a Aneel, a ANP”, explica Batista.
Caso as ações propostas pelo governo sejam cumpridas, o ONS prevê que os reservatórios cheguem até novembro com 10,3% da capacidade — contra um volume de 7,5% se nada for feito. Mesmo que o Brasil enfrente a crise sem precisar passar por “apagões”, o especialista ressalta que os racionamentos deverão ser adotados de tempos em tempos até que a população se conscientize de que “a energia elétrica é um bem finito” e, portanto, deve ser economizada. “Para evitar novas crises, os governos devem se atentar para o fato de sermos um país extremamente rico em recursos energéticos, priorizando a energia limpa”, conclui.
Com informações do portal Jovem Pan.